Travessias da América

Ao longo da história da América Latina, as viagens sempre ocuparam um importante lugar nas relações entre os povos e as culturas observados no traçado de uma infinidade de redes e caminhos indígenas e pré-existentes a chegada dos conquistadores. Sabe-se, portanto, que o sentido da viagem foi profundamente alterado pela modernidade, uma vez que o ato de conhecer o outro, significava para a ordem colonial o domínio físico e simbólico visando eliminar ou reafirmar a diferença de maneira hierárquica. Neste texto, iniciado em 2016 em um jogo de encontros com documentos em uma viagem a Valparaíso, gostaria de retomar a dimensão poético-política das viagens pela América Latina em dois contextos temporais distintos: A proto-travessia do Amazonas (1941) <ID748> e primeira travessia de Amereida (1965) <ID502> dos fundadores da Escola de Arquitetura de Valparaíso (Chile) e a viagem-obra Notícias de América (2012) do artista Paulo Nazareth <ID883>. Nos dois contextos, as viagens fundamentam-se na ideia de deriva continental latino-americana, abrem-se para a percepção de outras camadas para além daquelas contidas nos mapas, reinventam trajetos na profunda relação estabelecida entre paisagem e tecido social e transformam as fronteiras em zonas opacas de remediação entre o território e a existência individual e coletiva do sujeito.  

Embora a Ciudad Abierta de Amereida (1971) seja uma referência importante e já consolidada no campo da Arquitetura latino-americana e entendida como uma experiência de ruptura com o pensamento racionalista e funcionalista moderno. Ao abordá-la, a maior parte dos críticos continua interessada na perspectiva do ensino de projeto e da arquitetura da Ciudad Abierta como uma heterotopia que fez das dunas de Ritoque um refúgio lúdico-poético resistente a uma das ditaduras mais violentas da América Latina. No entanto, mais do que uma ruptura com a Arquitetura Moderna de forma isolada, a Escuela de Vaparaíso é resultado de uma série de conexões com o território e o pensamento artístico latino-americano de vanguarda – principalmente o universalismo construtivo e o movimento arte concreto-invención – que antecedem as viagens fundantes e sua pedagogia radical106. As relações que tal aventura guarda com o Manifesto A Escola del Sur (1935) no qual o  artista uruguaio Joaquín Torres-Garcia propõe que “viremos o mapa de cabeça para baixo para ter uma ideia exata da nossa posição, sem nos incomodar com o que pensa o resto do mundo”107 não são aleatórias. Godofredo Iommi e Claudio Girola eram argentinos e haviam sido influenciados e guardado uma relação recíproca com a produção artística da bacia do Prata durante a primeira metade do século, principalmente através do movimento argentino arte madí e concreto-invención e no contato com a revista Arturo108. No entanto, mais do que apenas um ato simbólico de girar o mapa, as travessias se apoiaram na ideia de negar um pensamento colonizador representado historicamente pela costa do continente para procurar o seu mar interior, uma deriva rumo ao âmago da América. 

Por isso, a relação estabelecida por mim com o Archivo José Vial Armstrong, no qual se encontram os registros dessa aventura poética, foi de natureza afetiva e na condição de viajante interessada, principalmente, nos rastros e memórias encontradas em correspondências, diários, fotografias, mapas, rascunhos, etc trocadas entre seus membros e uma rede de pensadores latino-americanos e estrangeiros e do entendimento da viagem como centro de experimentação e tomada de consciência coletiva sobre nosso território. A leitura do livro Amereida (1967), escrito coletivamente ao longo da primeira travessia (1965) e registrado nas bitácoras, marca esse processo de pesquisa em que poesia e território caminharam sempre juntos.   

Os atos fundantes dessa Escola ampliam o entendimento e concepção da arquitetura como ato poético e, por extensão, enquanto possibilidade de práticas autônomas às estruturas de ensino e poder daquele momento. Reativar os documentos para compreender suas origens e entende-la na mesma perspectiva que Juan Borchers (1910-1975) escreve em sua caderneta de anotações sobre sua investigação nos arquivos de Indias de Sevilla em 1950: “retrato de algo, que me permite entreabrir una rendija sobre eso que era objeto viviente y del cual queda algo ya movido o no queda nada. La ruina que ello significa: algo así como la Ilíada respecto a la guerra. El documento como poema”. (BORCHERS apud BERRÍOS, 2010).