A história que pretendo narrar neste texto parte do meu encontro com uma notícia em um jornal espanhol durante meu estágio doutoral em Madrid em 2018. Se tratava da divulgação da exposição recém-inaugurada no Museu de América – La Hija del Virrey. El mundo feminino novohispano en el siglo XVII. A chamada da notícia[1] associava uma pintura de arte virreinal na qual apareciam duas mulheres – uma europeia e uma indígena – a uma pintura “feminista”. Logo me perguntei sobre a noção de feminismo estava ali sendo posta em conflito e me veio a mente o texto de Karina Bidaseca “Mujeres blancas buscando salvar a las mujeres color café” (BIDASECA, 2010). Neste texto, Bidaseca discute, a partir de um caso de violação dos direitos da mulher, as questões relativas a um colonialismo jurídico-discursivo que estabelece regras para a expressão das subjetividades em determinados espaços de poder reforçando as narrativas femininas da subalternidade.
No último século todas as esferas do mundo artístico têm sido questionadas quanto a sua política de representação, incluindo nestas tanto seus atores como seus modos de circulação e validação pelas instituições. No caso específico da América Latina, essa seletividade do conhecimento afeta diretamente o modo e a forma como consolidamos o repertório visual sobre nós mesmos. Sabemos que, historicamente, o fazer artístico se mostra como um lugar de poder dominado por homens e a participação da mulher esteve orientada ao seu lugar apenas como objeto da representação, moldando uma identidade hegemônica de um feminino idealizado a atravessar nosso tempo – da pintura à publicidade –, fazendo com que nas últimas décadas as mulheres, e também os corpos dissidentes, se rebelem contra o domínio narrativo masculino e patriarcal reivindicando o lugar de sujeitos da representação.
Neste trabalho, gostaria de discutir, a partir da análise de algumas obras icônicas da história da arte latino-americana, centrando-me, posteriormente, na arte mexicana pós-1968, como essa política de representação foi, gradativamente e inconstante, modificando-se e movendo-se do espaço doméstico em direção ao espaço público. Utilizo, contudo, a metáfora da rede para me referir a estas histórias em dois sentidos: primeiro para marcar esse atravessamento não linear no tempo histórico e da própria América latina que conecta estes distintos corpos femininos, mesmo que separados geograficamente, permitindo pensar outras geografias para a arte; segundo por seu forte caráter solidário e colaborativo e no qual a rede, como resultado de um trabalho do tecer, reconecta saberes e práticas ancestrais, transmitindo-as e modificando-as de gerações em gerações.
Partindo do pressuposto de por séculos as manifestações artísticas e simbólicas dos povos originários não foram consideradas dentro do repertório visual da história da arte, esta ultima como instituição europeia foi, portanto, responsável por criar uma narrativa colonial sobre ‘o novo mundo’. Não somente destruíram aquilo que encontraram como também delegaram aos objetos e corpos da América hispânica e portuguesa um lugar menor ou subalterno na história da cultura.
5.3.1 Um encontro de mundos
A “produção artística” desenvolvida após a chegada dos europeus e das missões evangelizadoras e conhecida como arte colonial ou virreinal teve, predominantemente, função didática ao buscar educar os selvagens sob os valores da igreja e livra-los de todo imaginário ou cosmologia própria. Uma série de pinturas da época virreinal nos permitem pensar os modos de representação do outro apresentando como algo exótico ou fantástico e que formou a cultura visual moderna e, ainda hoje, predomina no pensamento europeu. No retrato Dª Maria Luisa de Toledo y mujer indígena (1670) <ID627> atribuído a Antonio Rodríguez encontram-se representado o encontro de dois mundos, no caso, mundos femininos. A mulher a ocupar quase toda a superfície da pintura é a filha do Virrey da Nova Espanha António Sebastián de Toledo, parte da corte de mulheres formada no Virreinato do México e da qual fez parte também Sor Juana Inés de la Cruz (1651-1695), a noviça rebelde cujo protagonismo feminista se reconhece hoje por meio de seu pensamento filosófico escrito. Há neste retrato a tentativa do pintor em representar um afeto entre as duas, mas a mão apoiada sobre a cabeça assume uma posição paternalista e afirma a superioridade sobre a mulher anã indígena, provavelmente de origem chichimeca, povo historicamente conhecido por sua resistência à colonização. Ao analisar essa obra, Andrés Gutierrez Usillos[2] observa que para além da presença feminina, há o prestígio garantido pelo triplo exotismo: a mulher é representada, simultaneamente, como anã, indígena e tatuada, no sentido que é também uma propriedade da corte incorporada por um processo de aculturação. O objetivo parece ser, contudo, o de ressaltar a beleza e as qualidades do padrão europeu por oposição a essa outra beleza indígena.
O desenvolvimento de uma cultura mestiça ao longo do século XVIII, ainda que determinado pelo olhar colonial e católico, permite a inserção de outras formas de visualidade na esfera da representação da arte. A pintura Virgem da Montanha (cerca de 1720) <ID799>, hoje localizada na casa da Moeda de Potosí (Bolívia), nos permite pensar os modelos de representação do feminino. A representação da virgem denota o sentido religioso imposto pela colonização e também um sincretismo fruto de uma cultura criolla em que as saias da virgem assumem a forma de montanha em referência a Pachamama, deusa da terra andina e da criação. Ao redor da figura central os homens e a igreja, para além de adorar a virgem, protegem e abençoam a prata depositada sobre seus pés, em um claro desejo de posse dessa riqueza.
Nos processos de independência que se seguiram a partir do século XVII, nota-se um menor domínio da tradição eclesiástica europeia, mas que, no entanto, é substituída por valores estrangeiros de forte inspiração iluminista ressaltando os heróis da pátria. Na pintura Simón Bolívar, libertador e pai da nação (Pedro José Figueroa, 1819) <ID361>, uma figura feminina surge em tamanho reduzido e ao delegar o cuidado da pátria a figura de Simón Bolivar nota-se a função patriarcal da representação. Nesta representação busca-se dar a mulher uma conotação indígena ao inserir elementos como um cocar de penas vermelhas sob sua cabeça e um arco e flecha, ainda que sua feição seja mais próxima de uma mulher criolla representada por seu vestido, joias e feição quase angelical normal às pinturas coloniais. A presença da mulher de traços ou portando vestimenta indígena nas pinturas funcionava como uma estratégia para convencer visualmente aos indígenas que estes também faziam parte da nova república, ainda que a independência não trabalhou para reivindicar os direitos dos indígenas, muito menos das mulheres.
Neste mesmo período, diversas expedições de pintores e pesquisadores são enviadas a América latina no intuito de registrar de maneira empírica as raças, costumes e paisagens para a conformação de atlas e enciclopédias. As imagens produzidas por esses pintores, dos quais destacamos Alexander von Humboldt e Jean Baptiste-Debret, alimentaram o imaginário estrangeiro e contribuíram para a formação de uma visão totalmente estereotipada e pitoresca dos corpos e culturas. A nudez dos indígenas e uma fetichização atribuída aos corpos negros reveladas, sobretudo nos cartões de visita com retratos dos escravos e empregados das classes abastadas[3], incorporam um lugar de representação para esses corpos. O giro emancipatório dado pelas vanguardas artísticas nas primeiras décadas do século XX, buscava rechaçar a hegemonia das representações e romper com o classicismo europeu levando a renovação da modernidade. Ainda que em contato com as correntes internacionais, os artistas locais passam a desenvolver um modernismo especificamente americano consolidado por uma relação próxima entre arte radical e política revolucionária representados pelo nativismo ou por uma ênfase no realismo social, mas que do presente merece uma série de ponderações críticas que nos afastem definitivamente dos nacionalismos e dos estereótipos construídos e incorporado às instituições.
5.3.2 México, mulheres e revolução
No caso do México essa aproximação do universo político é ativa, uma vez que a participação de mulheres na revolução de 1910 foi intensa, possibilitando, assim a consolidação de uma outra imagem feminina no imaginário coletivo e a consolidação de seus direitos no período pós-revolucionário. Sob o ponto de vista artístico e literário, uma série de mulheres mexicanas destacam-se em sua produção extremamente pessoal e única, as sete cabritas como tece a ensaísta Elena Poniatowska (2000) acerca destas sete mulheres imprescindíveis à cultura mexicana – Frida Kahlo, Nahui Olin (Carmen Mondragón), Pita Amor, Rosario Castellanos, María Izquierdo, Elena Garro y Nellie Campobello. A referência às cabritas do título indaga sobre a qualidade rebelde, revolucionária e nada doce destas mulheres diante de seu tempo, “Las siete cabritas porque a todas tildaran de locas y porque más locas que uma cabra centellan como las siete Hermanas de la bóveda celeste”[4]. Em seus talentos individuais, cada uma destas mulheres também circulava livremente entre o meio social e intelectual pós-revolucionário e desenvolveram uma espécie de amizade vital que as conectava em um sentido comum. María Izquierdo, já naquele tempo, dava-se conta dos embates constantes em uma sociedade machista, afirmando “es um delito nacer mujer. Es un delito aún mayor, nacer mujer y tener talento”[5]. Entre todas estas brilhantes mulheres, Frida Kahlo destaca-se como a artista de maior destaque internacional, instalando-se como um ícone feminista no imaginário popular. Para além de sua história de vida sofrida e seu romance conturbado com Diogo Rivera, a importância da obra de Frida se dá por um outro feminino, no caso, seu próprio corpo deslocado para a pintura. A partir de uma dimensão autobiográfica ao mesmo tempo intensamente articulada ao imaginário popular e que extrai da própria tradição do retrato – se pensarmos que esse foi ao longo dos séculos um mecanismo de captura do outro – sua potência discursiva. Frida dialoga com as representações populares da Virgem de Guadalupe <ID921> e a tradição dos ex-votos reconfigurando o lugar de representação da mulher na arte, essa mulher não é mais a santa ou a pátria a ser protegida, mas assume seu próprio corpo e seu desejo. Laura Mulvey (1991) refere-se a essa projeção subjetiva da obra de Frida como uma topografia feminina mascarada e herdada por outras artistas contemporâneas:
Em uma série inesgotável de auto-retratos, Frida pintava seu próprio rosto como uma máscara e ocultava seu corpo em elaborados vestidos Tehuana. Algumas vezes o véu cai, e seu corpo ferido vem à tona, intensificando suas feridas físicas reais com as feridas imaginárias da castração e com o espaço concreto interior do corpo feminino, o útero, que em sua pintura autobiográfica, sangra de um aborto natural. A máscara de Frida Khalo era sempre a sua própria. (MULVEY, 1991, p. 149).
Na obra Autorretrato con pelo corto (1940) <ID792>, a artista insere-se na imagem assumindo o masculino como máscara para questionar a construção simbólica e valorização do feminino vinculada aos cabelos longos. No topo da pintura a frase, em referência aos ex-votos, “mira que se te quise, fué por el pelo, ahora que estas pelona, ya no te quiero” evoca a objetificação dos cabelos da mulher na sociedade mexicana. Ainda que desfrutando de uma série de privilégios em relação a cultura latino-americana, as mulheres mexicanas ainda estavam subordinadas aos padrões culturais estrangeiros e ao domínio patriarcal de sua imagem e seu corpo.
A partir da década de 1960, a questão da liberdade sexual e dos corpos desviantes toma conta do debate mundial. A cena mexicana é tomada por uma efervescência cultural e política cuja face era extremamente jovem e questionadora dos valores tradicionais e suas instituições, tais manifestações são violentamente reprimidas, como no caso do ataque e fechamento da cidade universitária e o posterior massacre de Tlatelolco (OUTUBRO, 1968). Embora o México não tenha passado por uma ditadura militar, o Estado atuava no controle e cerceamento das liberdades e fizeram com que os corpos e grupos alternativos e marginais desenvolvessem códigos e estratégias para burlar o sistema repressivo. No ano de 2007, a exposição intitulada La era de la discrepancia[6] debruçou-se sobre a produção cultural e artística no período entre 1968-1997, recuperando uma infinidade de grupos e estratégias de vanguarda do período e nota-se que nas experiências dos anos 1970, o corpo feminino assumirá um protagonismo político, fruto da revolução sexual iniciada na década anterior, torna-se objeto transgressor e marcante no espaço e, para além de ser um corpo representado, consolida como forma agente e rebelde. O contexto pós-1968, ficou conhecido como a segunda ola feminista, a luta pela liberdade do corpo fez com que várias mulheres começassem a se articular politicamente para garantir modificações na legislação como o direito ao planejamento familiar através de método contraceptivos e ao aborto legal, no qual se destaca o grupo pioneiro Mujeres en Acción solidaria (1971). O grupo formou-se a partir da publicação do artigo de Martha Acevedo, Nuestro sueño esta en escarpado lugar (ACEVEDO, 1971), no qual relatava o histórico da luta feminista no México. Posteriormente, organizam atos públicos e transforma-se em um espaço de apoio e articulação no qual as mulheres podiam dialogar e compartilhar suas próprias experiências pessoais, tomando consciência dos problemas: relações entre capitalismo e patriarcado, o trabalho doméstico e dupla jornada, a opressão ideológica familiar, até a união de algumas a grupo sindicais. As artistas desta geração chamam a atenção para o fato de que, por mais que os feminismos e a discussão sobre gênero tivessem lugar naquele momento em vários pontos do mundo, no México isso não parecia ser uma discussão levantada por mulheres artistas, uma vez que algumas temiam uma ameaça do próprio sistema, como de seus parceiros. No entanto grupos de mulheres passaram a se articular coletivamente, ganhando força sobretudo a partir do seminário imersivo Traducciones: un diálogo internacional de mujeres artistas (1979), fruto do trabalho e aproximação de Monica Mayer com a The Woman’s Building de Los Angeles[7].
A partir da década de 1980, começam a aparecer uma série de propostas envolvendo o corpo e questionando os padrões de gênero, muitos deles através de performances, vídeo ou fotografia. Dois grupos criados nessa época, Polvo de Gallina Negra (PdGN, 1983-1993) e Tlacuilas y retrateras (1983), mostravam estratégias artísticas, muitas delas usando o humor e a metáfora, para criticar os códigos culturais patriarcais e machistas que continuavam entranhados à sociedade mexicana. O PdGN foi um grupo formado pelas artistas feministas Mónica Mayer e Maris Bustamante que, alinhado com as práticas artísticas informacionais, buscavam entrar nos sistemas de comunicação para buscar modificar ali mesmo a imagem da mulher[8]. O nome do grupo fazia analogia a um tipo de superstição que rondava o imaginário popular e era vendido nos mercados da cidade em pequenos envelopes marcados com um símbolo de uma galinha para evitar “mal de ojo”. Partindo de uma série de envios por correio, o projeto visual Madres (1987) <ID995> questionava de forma cômica e metafórica o valor simbólico atribuído a figura materna na sociedade mexicana sem, no entanto, emancipa-las do controle patriarcal sobre seus corpos. Posteriormente, a dupla passa a frequentar também os canais de televisão como na aparição performática Madre por um día <ID943> apresentada no programa Nuestro Mundo (1987) de Guillermo Ochoa. Essas performances ocorridas em TV aberta, buscavam dar visibilidade a sobrecarga do trabalho doméstico convidando o apresentador a assumir tais tarefas.
Tlacuilas y retrateras, cujo nome fazia referência a deusa Xochiquetzal, foi um grupo de curta duração e também originado a partir de discussões e seminários feministas organizados na ENAP sob a coordenação de Mónica Mayer e que resultaram em uma exposição coletiva e ações orientadas a uma crítica a Fiesta de las quinceañeras[9] como ritual representativo da tradição patriarcal mexicana. Essas primeiras experiências no sentido de uma real emancipação da mulher no espaço público, a busca por uma ruptura da noção de gênero aplicado ao campo artístico são contribuições importantes, mas que no contexto contemporâneo tem remetido a uma resposta violenta e que, contudo, ultrapassa o campo simbólico das representações para transformar-se em uma verdadeira epidemia de feminicídios.
5.3.3 Sangre Nuestra
Em 2005, a antropóloga e ativista Marcela Lagarde y de los Ríos (2005) utiliza o termo feminicídio para designar a violação sistemática dos direitos das mulheres e o seu silenciamento por parte do Estado, sobretudo em áreas periféricas de extrema pobreza ou na qual se detecta ausência do Estado de direito, como é o caso de Ciudad Juaréz e Acapulco. Ambas as cidades têm apresentado desde meados dos anos 1990 índices alarmantes de assassinatos de mulheres, muitos deles antecedidos de sequestros, estupros, torturas e ocultamento de cadáveres, sendo estas as características que vão legitimar a condenação nos termos da lei. Ciudad Juárez é uma cidade de fronteira (El Passo, Texas) que tem sido utilizada como parque fabril de indústrias multinacionais de componentes eletrônicos – sobretudo para celulares – conhecidas como maquiladoras e implementadas após o Tratado de livre comércio da América do Norte (NAFTA, 1994). Essas empresas utilizam, em grande parte, mão de obra feminina jovem criando um imaginário que conecta a delicadeza das mãos femininas à manipulação das micropeças. Desde 1993 mulheres seguem sendo sistematicamente assassinadas em Ciudad Juárez. Os motivos dos crimes são diversos, incluindo pactos silenciosos entre capital transnacional, Estado e narcotráfico, ambos beneficiários da violação de direitos humanos e trabalhistas e da condição de marginalidade destas populações e que, portanto, atuam no silenciamento destas histórias e a construção de um clima de constante inseguridade pública para as mulheres. O perfil das mulheres desaparecidas ou assassinadas segue quase o mesmo padrão, são estudantes ou trabalhadoras jovens de 15 a 25 anos que, em contextos extremamente machistas e misóginos, buscavam modos de se emancipar. No contexto de ambas as cidades, o desejo destas mulheres, a maioria submetida a jornadas duplas ou triplas entre regime de subemprego e trabalho doméstico, parece ser, unicamente, o de voltarem vivas para seus lares.
O número expressivo de assassinatos brutais e a não investigação da maioria dos crimes pelas autoridades locais, fez com que as artistas Elina Chauvet (Chihuaua, 1959) e Lorena Wolfer (Cidade do México, 1971) tenham retomado o uso do espaço público como forma de reivindicação política. Suas obras surgem espontaneamente nas cidades convidando a população a tomar consciência do problema da violência de gênero e envolver-se na luta coletiva por justiça. A obra Zapatos Rojos (Elina Chauvet, 2009) <ID79> foi feita pela primeira vez em Ciudad Juaréz como ação poética-política e forma de pedir justiça pelo assassinato de sua irmã e de outras mulheres na condição de desaparecidas. Para criar a obra a artista solicitou doações de sapatos de associações de mulheres e, através de oficinas que funcionavam como locais de apoio e mobilização comunitária para as famílias, iam pintando os sapatos que depois eram espalhados em calçadas e praças da cidade, de forma a dar visibilidade à ausência daquelas vidas. Os sapatos vermelhos, como afirma a artista, remete não apenas ao sangue das vítimas, mas também ao amor incondicional de suas famílias que mesmo na ausência do Estado continuam buscando por seus entes, por isso, os sapatos andam pelo espaço para nos lembrar que a luta continua. A obra ficou reconhecida mundialmente, passando a viajar pelo México e também pelo exterior, e sendo sempre construída através de doações e envolvimento direto das comunidades locais. Em 2014, Elina faz uma outra performance intitulada Mi cabello por tu nombre e na qual deixa crescer seu cabelo, o cabelo comprido como marca comum a unificar as vítimas, e o corta criando a partir das mechas bordados com o nome de todas as vítimas pelas quais as famílias ainda buscavam justiça. Ao final do ato, ela tatua a palavra justiça na cabeça como forma de evidenciar o encobrimento dos crimes, assim como o cabelo que voltaria a crescer nos fazendo esquecer do real sentido da palavra como um direito.
Merecem destaque também os trabalhos da artista e ativista Lorena Wolffer que vem trabalhando desde os anos 1990 sobre questões de gênero e sua visibilização pela sociedade. Sua atuação envolve desde performances na qual incide em seu próprio corpo; apropriação dos meios de comunicação como outdoors, jornais e televisão; instalações no espaço público e atividades de curadoria e docência. Conforme afirma a artista, a criação de suas obras está mais vinculada a necessidade de enviar uma mensagem, do que, propriamente, ter o meio ou o lugar como prerrogativas já pré-determinadas. Daí a enorme variedade de linguagens e propostas a abarcar a obra de Wolffer, sua capacidade de acercar-se a diferentes tipos de público e contextos sociais para evidenciar a violência de gênero como um problema coletivo e não apenas desde a esfera privada, onde parte do patriarcado tenta mantê-la.
Na instalação Mientras dormíamos (El caso Juaréz) (2004) <ID839>, a artista realiza uma performance na qual, a partir de notícias publicadas em jornais policiais e traço marcante de uma cultura informada por notas rojas, cria um mapa simbólico para documentar e narrar a violência:
En un ambiente de morgue, la pieza consistía en reproducir en mi propio cuerpo, con un plumón quirúrgico, cada uno de los golpes, cortadas y balazos que dichas mujeres sufrieron. De esta forma, mi cuerpo se transformaba en un vehículo de representación de la violencia hacia las mujeres en Ciudad Juárez, hoy aparentemente institucionalizada.[10] (WOLFFER, 2004).
Enquanto uma voz masculina vai narrando as notícias, Lorena atua trabalhando seu próprio corpo como lugar político, a questão central colocada pela artista visa denunciar um controle sob do corpo feminino entendendo-o como objeto e território de domínio público. Lorena Wolffer também tem desenvolvido uma série de trabalhos no espaço público e que foram reunidos na exposição Expuestas: registros públicos (2007-2013) no Museu de Arte Moderno da Cidade do México, entre eles destacam-se alguns que são parte de um amplo de mapear a violência de gênero diante do crescimento do número de assassinatos.
Na performance pública 14 de febrero (2008), Lorena utiliza o depoimento de Fabiana, uma mulher em situação de refúgio por violência doméstica, como detonador da falsidade de um certo romantismo vinculado a datas comemorativas e a violência cotidiana. A história de Fabiana é a de uma mulher obrigada pelo marido a vender doces no sinal de trânsito junto aos quatro filhos e cujo desfecho são os espancamentos constantes e violências sofridas por sua família ao regressar a casa sem conseguir vender todos os doces. Assim, a artista veste uma roupa vermelha e distribui às pessoas fragmentos do depoimento de Fabiana atados a pequenos chocolates no sinal de trânsito da Avenida Revolución na cidade de México. Algumas pessoas aceitam e não se afetam pelas mensagens e outras recusam, sendo os chocolates restantes sendo trasladados ao museu e utilizados para formar a palavra FABIANA.
Infelizmente, essas obras são apenas fragmentos que buscam confrontar um destino trágico imposto pela dominação patriarcal de todos os sistemas e espaços da vida. Poderíamos, sem dúvida, incluir outros grupos de artistas feministas que buscam buscando sensibilizar a opinião pública para depoimentos e histórias reais de violência de gênero nos espaços urbanos de toda a América Latina, sobretudo no sentido de fazer dos corpos das mulheres sujeitos realmente livres. Quando olhamos a história recente de movimentos feministas latino-americanos como o Mujeres Creando (Bolívia), um coletivo de rebeldia e dignidade e uma fábrica de produção de justiça para as mulheres bolivianas, ou o Alfombra Roja (Peru) em sua denúncia pública das esterilizações forçadas de mulheres indígenas e periféricas durante o governo Alberto Fujimori (1990-2000) estamos reivindicando vários feminismos que se unem para um mesmo fim. Nos tempos atuais, quando milhares de mulheres se mobilizam, marcham, fazem atos festivos no espaço público buscando superar o paradigma patriarcal reforçado por essa tradição histórica arraigada no tecido social, pensamos em todas que vieram antes de nós e pela quais ainda lutamos. Assim, para finalizar deixo o poema de Susana Chávez, violada e assassinada em 2011 na cidade de Juaréz e que nutre nossa irmandade rebelde:
SANGRE NUESTRA
Susana Chávez
Sangre mía,
de alba,
de luna partida,
del silencio.
de roca muerta,
de mujer en cama,
saltando al vacío,
Abierta a la locura.
Sangre clara y definida,
fértil y semilla,
Sangre incomprensible gira,
Sangre liberación de sí misma,
Sangre río de mis cantos,
Mar de mis abismos.
Sangre instante donde nazco adolorida,
Nutrida de mi última presencia.
[1] BARREIRA, DAVID. El cuadro más feminista (y clasista) sobre la conquista del Nuevo Mundo. El Universal, 30 de Octubre de 2018. Disponível em: https://www.elespanol.com/cultura/arte/20181030/cuadro-feminista-clasista-conquista-nuevo-mundo/349216132_0.html
[2] GUTIERREZ USILLOS, Andrés (2019). La representación del mundo indígena en el arte virreinal. Conferência no Museu do Prado (Madrid) em 13 de abril de 2019. Disponível em: https://youtu.be/p3R2qCi-_iY. Acesso em: 10 ago. 2019.
[3] ADES, Dawn (1997).
[4] PONIATOWSKA, 2000, p. 16.
[5] IZQUIERDO apud PONIATOWSKA, 2000, p. 90.
[6] MUAC, 2014.
[7] The Woman’s Building usava uma metodologia alternativa a dos movimentos políticos feministas tradicionais: “A ‘small group’ methodology was used there, based on dialog on recurring issues in feminism related to relationships with money, love, the body and sexuality. The personal realm was amplified in the experiences of the members of the group and of society. Artists from the past were also studied in order to elaborate an alternative history of art that took the works of past women artists into account. Heterogeneous materials were utilized and performances dealing with issues such as incest or lesbianism were often called upon. These activities were mixed with classes on Marxism or Political Art.” (GIUNTA, 2013, p. 15).
[8] ARIAS, 2001.
[9] MUAC, 2014, p. 310.
[10] Disponível em: https://www.lorenawolffer.net/00home.html