Miradas que controlam

Compreender como os eventos ocorridos no espaço urbano afetam e influenciam a produção artística torna-se tarefa fundamental para o entendimento das questões colocadas pelas obras a serem analisadas neste artigo. Na história recente da Argentina, o evento-protesto Tucumán Arde ocorrido em Rosário em 1968 é um ponto de inflexão, ainda que não seja o único127, para a compreensão das artes visuais no país a partir de 1970. Organizado pelo Grupo de Arte de Vanguarda de Rosário e artistas vinculados ao Ciclo de Arte Experimental, esse evento pode ser lido, para além de um mito fundador das relações entre estética e política que atravessam o conceitualismo latino-americano nos anos 1960, como a convergência de aspirações e ruptura as próprias prerrogativas institucionais da arte para criar novas correspondências entre arte e política capazes de promover mudanças sociais. 

Tucumán ARDE <ID1003> pode ser entendido como um evento no qual a exclusão ou luta social não era tratada apenas como “tema”. Um aspecto chave para compreendê-lo reside em observar a diferença entre os movimentos vanguardistas da primeira e segunda geração ao longo do século XX, pois tratou-se de um envolvimento real, coletivo e mais profundo, alinhado com as prerrogativas do programa político da Confederación General del trabajo (CGT) da Argentina. Funcionando em princípio de forma anônima, sua preparação incluiu uma agenda descontínua de atividades de investigação, a contar com sociólogos, economistas, jornalistas e líderes sindicais, assim como viagens, entrevistas, filmagens e outros modos de documentação dessa realidade que foram inseridas no trabalho (LONGONI, 2014). Portanto, uma perspectiva sociológica ou etnográfica de aproximação ao problema, capaz de traduzir em outros meios a situação de fome e marginalidade da população da província de Tucumán. Negada pelo discurso oficial, a problemática da região de Tucumán se deve a substituição da indústria açucareira por uma política econômica de desaceleração da indústria argentina e abertura ao investimento e implementação de multinacionais no território, um traço comum a todas as ditaduras da América do Sul128.  

A segunda etapa aproximou-se de estratégias “publicitárias” como cartazes simples com a palavra “Tucumán” ou grafites escritos “Tucumán Arde” nos muros e superfícies da cidade. Observa-se também chamadas nos meios de comunicação oficiais criando uma espécie de guerrilha simbólica silenciosa que buscava captar a atenção do público geral para o problema e atravessar os setores sociais mais afetados pelos impactos econômicos. A terceira etapa consolidou a instalação e exibição da pesquisa da primeira etapa na forma de ocupação, desta vez não em um museu ou galeria, mas na sede da CGT em Rosário sendo levada, posteriormente a Buenos Aires. Na entrada uma faixa recebia os visitantes: “Visite Tucumán Jardin de la miséria”. Nas paredes cartazes colados com gráficos e notícias que ajudavam na publicização da condição de vida, negada e reprimida pelo Estado129. Essa etapa é o que vem sendo considerado pela historiografia tradicional como o “objeto artístico” valorizável desse movimento que esvazia todo o processo de engajamento coletivo dos meses anteriores. A quarta etapa não chegou a ser terminada, mas visava a documentação e publicação de todo o processo, revelando assim a preocupação procedimental e conceitual da arte naquele momento. Tendo a compreender, que essa última etapa, tem sido retomada com bastante critério e cuidado a partir dos anos 2000 por críticos e curadores como Ana Longoni e os investigadores articulados ao redor da Red Conceptualismos del Sur130, revelando a árdua tarefa e dimensão arqueológica da pesquisa de arquivos no sentido de reinserir a pluralidade de narrativas sobre a história recente da América Latina. 

O período coincide com o golpe militar de Estado conhecido por Revolução Argentina (1966-1972) e, consequentemente, a fuga massiva de intelectuais e escritores do país, a consolidação de movimentos guerrilheiros e uma série de insurgências civis – as conhecidas puebladas – nas cidades rurais e polos industriais, como é o caso do Cordobazo (Maio, 1969) <ID413> e do Rosariazo  (Maio, 1969) <ID1013>, ambas práticas espaciais que marcam a história urbana possibilitando uma outra narrativa. As insurgências, as migrações de miseráveis para os centros urbanos, as remoções das centenas de villas miséria e as deportações oficiais de imigrantes bolivianos e paraguaios que viviam nelas, tornam-se rastros de uma história de violências espaciais que a cidade testemunha baixo a política desenvolvimentista das ditaduras, sob a cumplicidade de vários setores empresariais e de classe média. É relevante compreender o início dos aos 1970 como um momento crucial no qual as relações entre as políticas públicas e o financiamento internacional atinge parte importante dos setores hegemônicos argentinos, levando os artistas a uma ruptura efetiva com as práticas culturais tradicionais e um posicionamento ideológico cristalino a situar-se como uma outra via, alternativa à política dos movimentos sindicais ou da guerrilha armada.  

Nesse contexto se destacam os artistas articulados nos grupos Instituto di Tella (1958-1970), cujo centro de artes visuais era coordenado pelo crítico Jorge Romero Brest, e o Centro de Arte y Comunicacn – CAyC (1971-1994) sob a direção de Jorge Glusberg. Ambos os grupos estavam envolvidos em novas especulações e experimentações artísticas nas artes visuais, música, cinema e teatro incorporando os “novos meios” como o vídeo e a música eletrônica no sentido de confrontar as relações do público com as artes e, assim, incorporando performances, happenings, intervenções públicas, festivais, etc. Neste texto, gostaria de me ater aos trabalhos de dois artistas vinculados ao CAyC – Jacques Bedel e Horácio Zabala – principalmente pelo fato deles serem também arquitetos e incorporarem técnicas de nosso campo à concepção de obras de forte caráter político.   

Objetos relacionados