Escrito por Gabriela Pires
Ao longo da história da modernidade, o trem é um dispositivo que ocupa o imaginário econômico e social do progresso e em seu vai e vem fez gerações sonhar com a possibilidade de uma vida melhor. Aqui as relações problemáticas entre centro e periferia parecem ganhar novos contornos: as grandes cidades atraindo o interior profundo, o espírito metropolitano rechaçando ou enviando de volta uma população que já não possui outro lugar, exceto nas bordas periféricas dessa cidade. Penso logo na pintura Os despejados (1934) <ID950>, de Cândido Portinari, na qual os corpos de uma família de retirantes caminha ao longo de uma linha de trem em que corpo e território se mesclam ao tom terroso da paisagem do sertão. Penso também nos personagens criados pelo pintor argentino Antonio Berni – Juanito Laguna e Ramona Montiel –, que sonham com o mundo prometido da cidade <ID669>, enquanto vivem em casas de lata e cartón em alguma vila de miséria de Buenos Aires.
A imagem que chama a embarcar em um desses trens é o retrato de uma jovem migrante nordestina cujo olhar se perde no horizonte de quem retorna sem contemplar seus sonhos. Essa é apenas uma das fotografias realizadas por Claudia Andujar para o a reportagem É o trem do diabo (maio, 1969) <ID974> para a Revista Realidade (1966-1976)[1]. Essa revista surge como um marco na história do fotojornalismo brasileiro, principalmente nos seus três primeiros anos de existência quando, em meio à ditadura militar, promovia um discurso transgressor e estabelecia um profundo vínculo com os aspectos sociais da sociedade brasileira, diferenciando-se do contexto específico da produção jornalística, que pactuava diretamente com os setores conservadores:
Realidade deu vida textual a esse conjunto de problemas. A leitura das reportagens que publicou permite identificar um sentido hegemonicamente revelador na investigação jornalística que conduzia sua produção para além dos limites da linguagem convencional da imprensa: no confronto com a materialidade das questões que seus profissionais abordaram, os recursos discursivos da revista resvalaram para formas literárias e ficcionais de narrativa que ampliaram sua penetração junto ao público leitor, transformando-a numa fonte de conhecimento e de disseminação dos novos padrões culturais da época em que existiu.
(FARO, 1998, p 4).
A revista Realidade estabeleceu a ponte entre um engajamento político das classes médias, principalmente setores ligados à produção cultural e ao meio universitário, com um jornalismo de caráter investigativo e denunciativo da realidade social e política do Brasil, marcando um sentimento de oposição ao conjunto autoritário de forças que se desenhava.
A fotógrafa embarca no “trem baiano” por um período de sete dias para produzir essa matéria, escrita de forma narrativa por Patrício Renato. O termo baiano, nome do trem, mas arraigado na linguagem cotidiana e que carrega todo o simbolismo da xenofobia arraigada na sociedade tradicional “da gema”, remete à história da formação da cidade de São Paulo, como se vê no documentário Tem que ser baiano? (1993) <ID966>, de Henri Gervaiseau. Produzido nos primeiros anos da transição democrática, o vídeo produzido com base numa ampla pesquisa documental e entrevistas, reforça, com clareza, a substituição do “mito Brasil” pelo “mito São Paulo” em seu patrimonialismo, racionalidade e disciplina capitalista (SOUZA, 2009, p. 65). A manutenção e o amadurecimento desse mito ao longo da ditadura brasileira permite fazer da hegemonia econômica a norma para o estabelecimento de um hierarquia cultural e política como modelo global para a nação. Estende-se, assim, ao migrante brasileiro posto como o outro nesse jogo de poder marcado pelo conflito do julgamento racial gerado por um não pertencimento à herança europeia das imigrações italiana, alemã e japonesas, incentivadas pelo Estado brasileiro, mas que são parte da mesma cidade.
A narrativa da reportagem é construída com a história de Santinho, um garoto negro e inquieto de sete anos, viajando de volta com a mãe e o irmão menor, e cuja curiosidade e inquietude vai cruzando com a história de vida desses outros sujeitos sem lugar. O trem baiano referia-se, no entanto, ao ramal férreo que, saindo da Estação Roosevelt (atual Brás) em São Paulo, conectava-se à Estrada de Ferro Central do Brasil em Barra do Piraí (Rio de Janeiro), passando por Belo Horizonte até Monte Azul[2] (Minas Gerais) até alcançar a Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro com final em Salvador. Os vagões de madeira e pintados de vermelho se distinguiam dos demais para marcar a separação daqueles que seguiam em direção ao norte. O relato textual e visual deixa claro a condição desses corpos marcados pela fome, anafalbetismo, falta de espaço e ar. Eles conseguiam as passagens gratuitas com o Departamento de Imigração e Colonização Secretaria de Agricultura de São Paulo, que também providenciava um farnel com dois pães dormidos e um pedaço de goiabada, para a maioria, a refeição do dia.
Pensar na função desempenhada por esse Departamento, inicialmente responsável pelo ordenamento e promoção da imigração no interior da estrutura admistrativa do Estado, levou a pesquisar a mudança de posicionamento com relação ao tipo de migrante. Do fim do século XIX até, aproximadamente, 1940, a Hospedaria do Imigrante (1887) refletiu a preocupação do Estado e das classes dirigentes em acolher e encaminhar adequadamente os estrangeiros recém-chegados para trabalhar nas fazendas paulistanas, principalmente de café. No entanto, para as migrações de origem nacional, a recepção não era mais mediada pelo Estado, deixando o trabalhador à própria sorte e cujo apoio se dava apenas por redes de parentesco e amizade. Esses migrantes se deslocavam para a cidade de São Paulo pelo atrativo de mão de obra, sobretudo no setor fabril e da construção civil, e, devido aos baixos salários, acabavam se fixando nos cortiços e pensões do centro da cidade ou se movendo para terrenos sem infraestrutura urbana em zonas mais longínquas. Assim, migração e urbanização são lados de uma mesma moeda e configuram a problemática da relação com o capital rentista imobiliário e origem dos movimentos de luta pela moradia ampliados após a redemocratização.
Ainda que em número menor, algumas dessas pessoas haviam passado pela Hospedaria do Imigrante, assim, ao fazer contato com o Museu da Imigração fui informada que os documentos haviam sido movidos para o Arquivo do Estado de São Paulo. Faço primeiro uma busca no site, não aparece nada além dos imigrantes estrangeiros. Faço contato pelo telefone e, automaticamente, sou transferida para o setor dos estrangeiros. Pergunto sobre os migrantes nacionais e, depois de falar com algumas pessoas, consigo encontrar o rastro desses arquivos que haviam sido transferidos em pastas relativas à Secretaria de Promoção Social (1967-1983). Essas caixas, diferentemente dos arquivos dos estrangeiros, não foram digitalizadas e só podem ser consultadas presencialmente e nem mesmo os funcionários sabem o conteúdo das cerca de cento e cinco caixas de documentos[3].
Resolvo, assim, ir a São Paulo para buscar por qualquer rastro documental que remetesse ao trem – algum formulário, cartas de pedido de passagem, listas de nomes, etc. Ao chegar ao prédio, identifico-me e, novamente, sou direcionada ao arquivo estrangeiro, uma sala especial e de fácil acesso, localizada no térreo do edifício. Os arquivos que buscava não estavam lá, habitavam “outra parte” daquele mausoléu de documentos do Estado. No entanto, ao fazer o percurso em busca dos documentos, ficou evidente, na segregação espacial do edifício, aquilo que Foucault (2003) chamou de hierarquia institucional do poder-saber. Informações sobre aquelas vidas secas cuja existência e história não importavam a ninguém nem a nada e podiam apenas habitar caixas sem nome e sobrenome[4].
Chegando ao setor de consulta, os arquivistas me informam que as caixas não foram previamente organizadas e, por isso, eu poderia solicitar uma datação apenas aproximada. Iniciei pelas fichas e prontuários dos assistidos e, nos três dias inteiros que passei revirando esses documentos, consegui trabalhar em apenas sete das caixas. Embora não tenha encontrado informações específicas sobre o trem, encontrei documentos, entre os quais se destacam fichas de origem-destino, pedidos de compra de materiais e móveis para o “setor de passagens”, pedidos de realocação para trabalho, incluindo alguns espanhóis de origem galega[5], entre outros. Principalmente as fichas com solicitação de encaminhamento para trabalho possibilitam entender a localização daquelas pessoas no território urbano – Brás, Sé, Bom Retiro, Cambuci, Pari e alguns bairros da zona norte – regiões que surgiriam como foco das intervenções urbanísticas de grande porte e ampliação do mercado imobiliário nos anos 1970 (KOVARICK, 1979).
Em meio às caixas de documentos, encontro uma série de trinta e duas reportagens publicadas por Jorge Calmon, em dezembro de 1954, no jornal A Tarde (Salvador) e intitulada As estradas correm para o sul (êxodo de bahianos). Embora publicado com 15 anos de antecedência da viagem de Andujar, o estudo mostrava um certo otimismo com relação à cidade grande, atravessado pela presença fanstasmagórica da fome e da seca no insconsciente sertanejo. Na mesma caixa havia um relatório com as estatísticas de migração, detalhando a procedência por municípios e zonas fisiográficas dos trabalhadores migrantes nacionais que haviam passado pela hospedaria no período de 1960-1963. Esse documento, de certa maneira, revelava que o grande êxodo baiano ou nordestino, na verdade, era superado em grande número por uma migração mineira. Na reportagem do trem baiano são apresentados os dados de relatórios dos anos de 1963-1967, em que o número é ainda maior; e, não fosse a inimizade que isso poderia causar em termos econômicos para a antiga república do café com leite, poderíamos chamá-lo de trem mineiro.
No entanto, não é somente da invisibilidade do nordestino que se faz história. E por isso, vou remeter ao mesmo trem que faria o mesmo percurso, mas criaria potência: o “trem de arte”, concebido por Lina Bo Bardi e Walter Zanini em 1968. Importante lembrar que Lina havia vivido em Salvador entre 1958 e 1966, ministrando cursos na Escola de Belas Artes da Universidade da Bahia e trabalhando na consolidação do Museu de Arte Popular, inaugurado no Solar do Unhão (1963). Estava intimamente conectada ao ambiente cultural da cidade de Salvador da Bahia e, certamente, foi das interações e viagens feitas na companhia de intelectuais e artistas neste período que surge uma Lina mais abrasileirada, expressão consolidada na exposição Bahia no Ibirapuera (1959) e Civilização Nordeste (1963) e no seu interesse pela arte popular como processo (RUBINO, 2018). A construção do MASP, inaugurado em 1968, certamente contou com a colaboração de um grande contingente de migrantes nordestinos e Lina, pelo envolvimento que tinha com o canteiro de obras, convivia com estes migrantes que deram forma à cidade de São Paulo e que aparecem na clássica fotografia de Lina sentada ao lado da pintura de Van Gogh, em um de seus cavaletes de vidro.
Ao mesmo tempo, Walter Zanini, na coordenação no MAC USP, inaugurado em 1963, trabalhava em uma política pedagógico-institucional que visava expandir os muros do museu mediante projetos itinerantes da coleção de arte contemporânea, conectando-as a outras instituições museológicas ou espaços artísticos, visando à descentralização desse tipo de arte em todo o território nacional[6]. Essa ideia de abertura do museu e a dessacralização da instituição de arte também fazia parte das discussões que Walter Zanini mantinha com um grupo de dirigentes de instituições culturais na AMAP (Associação dos Museus de Arte Brasileiros), incluindo entre eles Pietro Maria Bardi. Esse ambiente de discussões e trocas levou Zanini a assinar, em 1968, um convênio entre o MAC USP e a Companhia Paulista de Estradas de Ferro (CPEF) de São Paulo em que, visando a utilizar alguns vagões do trem a serem cedidos visando o “benefício educacional e cultural” da ação:
Zanini sugeriu que o vagão do Trem de Arte fosse locado em desvios dentro das estações das cidades que o receberiam, em locais seguros e de fácil acesso para os visitantes. O trabalho conjunto de ambas as instituições também dizia respeito à divulgação prévia das mostras em outras localidades através de rádios, cartazes e outros meios.
(PALMA, 2014, p. 37)
Para fazer a adaptação dos vagões, Zanini convida Lina Bo Bardi para o projeto expográfico, justificando a escolha pela atuação da arquiteta na frente da expografia do Museu de Arte Moderna da Bahia e do Museu de Arte de São Paulo. Responsável pelo projeto, Lina e Zanini fizeram algumas viagens aos depósitos de vagões da CPEF, elaborando o projeto seguido de um pequeno memorial descritivo[7]. Esse projeto guardava certa similaridade com o caminhão para exposições itinerantes que a arquiteta havia desenhado para a antiga sede do MASP, na rua 7 de Abril. No entanto, o vagão foi pensado como um pequeno museu autônomo com um ambiente expositivo e uma área destinada a atividades abertas ao público, além de instalações sanitárias e um pequeno depósito para armazenagem das obras em segurança enquanto o trem se deslocava. Infelizmente, o projeto foi interrompido nesse ponto devido à mudança do Conselho Diretor do Museu e sem a quantidade de votos suficientes, como descreve Zanini:
Não conseguimos votos suficientes […] ‘ah, é que as despesas…’, várias coisas não foram ditas, havia a despesa e a Paulista não ia fazer isso pra nós. E a Lina tinha feito um projeto com um belo de um compartimento, havia instalações para quando a pessoa chegava, bem confortável, e tinha pensado, quando chegava em uma estação, tinha conversado nas estações como fazer quando o trem chegava. Estava tudo muito bem encaminhado. Eu achava que ia atrair mais gente […]
(ZANINI apud FREIRE, 2013, p. 71).
O cenário era outro, a ditadura começava a ampliar a censura e Zanini havia iniciado o projeto simultâneo à publicação do AI-5, embora isso não tenha impedido a ampla divulgação do projeto nos jornais de várias cidades do Brasil com chamadas como Museu de Arte irá ao povo via paulista (Diário da Noite, São Paulo, 1 de janeiro de 1969), A arte vai de trem (Diário de Pernambuco, Recife, 23 de fevereiro de 1969) ou Trem de arte em São Paulo (Correio do Povo, Porto Alegra, 10 de janeiro de 1969). Coincidem, nesse aspecto, a visão que tanto Lina quanto Zanini tinham do Museu de Arte e como este último projetava suas ações dentro de um plano museológico de vanguarda. A contribuição de Zanini devia-se, sobretudo, pelas diversas redes interconectadas e capazes de criar ferramentas e dispositivos para livrar o museu do hermetismo da caixa branca. Como afirma Cristina Freire, “O Trem de Arte de Zanini seria o índice concreto desse dispositivo de deslocamento em rede capaz de integrar pessoas e lugares para favorecer o acesso às coleções e aos bens culturais de modo a ampliar o domíncio do público sobre o privado”. (FREIRE, 2013, p. 69).
Infelizmente, nesses dois casos, o trem não cumpre com sucesso o seu destino. Ao buscar descentralizar a hegemonia da metrópole e da arte como diferença em seu contato com o popular, Lina e Zanini atuam na construção da museografia descolonizadora. Por outro lado, as fotografias de Claudia Andujar indagam sobre esses corpos migrantes e permite, no presente, através de suas imagens, que atuemos na descolonização dos arquivos e na ruptura com as demais estruturas institucionais ainda pautadas pela função-metrópole.
[1] RENATO, Patrício; ANDUJAR, Claudia. É o trem do diabo. Revista Realidade, Ano IV, n. 38, p. 162-171, maio de 1969. São Paulo: Editora Abril. Em 2019, entrei em contato com o setor de arquivos da Editora Abril para solicitar acesso aos originais da revista, porém a consulta só poderia ser feita mediante o pagamento de R$100/hora, mesmo se tratando de pesquisa para fim acadêmico. Todas as edições da revista podem ser acessadas digitalmente na Coleção Memória da Biblioteca Nacional. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/213659/6606
[2] Até 1947, a linha férrea da FCB terminava na cidade de Montes Claros (Minas Gerais). A expansão da linha até Monte Azul em 1950, em ambos os sentidos, permitiu a conexão entre Sudeste e Nordeste por trem. A rede férrea é, posteriormente, substituída pela política rodoviarista a partir da década de 1960.
[3] Agradeço a ajuda da funcionária Márcia Beatriz que, sensivelmente, escutou e acolheu minha demanda de pesquisa, auxiliando na localização das caixas no sistema de acordo com a data solicitada. Para solicitar acesso a esse arquivo, contatar consulta@arquivoestado.sp.gov.br
[4] Nesse sentido, a oposição radical ao período de chegada dos estrangeiros no qual a busca pode ser feita por nome, sobrenome, nacionalidade, data e nome do vapor de chegada. Ver: http://www.inci.org.br/acervodigital/livros.php
[5] Muitos espanhóis de origem galega, temendo a repressão, após o início da ditadura franquista, exilaram-se para a América do Sul – movimento conhecido pelo projeto Galegos na Diáspora (1889-1991), do fotojornalista galego Delmi Alvarez. Na Espanha, ainda hoje, a presença dos galegos é vista com preconceito em algumas regiões.
[6] Zanini introduziu o MAC USP também em circuitos internacionais, recebendo artistas do MoMA e de outras instituições da América Latina, como é o caso do CAyC. Ver: FREIRE, Cristina. Walter Zanini: escrituras críticas. São Paulo: Annablume/ MAC USP, 2014.
[7] Embora tenha tentado contato por e-mail e telefone por mais de três vezes com o Instituto Lina Bo Bardi, infelizmente não obtive nenhum retorno, impossibilitando que a pesquisa pudesse contemplar os arquivos originais desse projeto. A prancha técnica do projeto pode ser consultada no Arquivo do MAC USP.